segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Uma paixão por correspondência

Apesar de não se identificarem com as actividades de divulgação etnográfica, o Libório e o Osonório serviam o rancho folclório da sua localidade como instrumentistas. De facto, dada a sua famigerada mestria na execução de melodias e acordes na concertina, inseriam grupos de índole etnográfica nas freguesias vizinhas.
Os componentes de um rancho folclórico distinguem-se em dois grupos, o daqueles para os quais a actividade é parte integrante dos seus propósitos de realização de vida e o daqueles que, na ausência de meios de entretenimento alternativos, seguem esses trâmites quando se encontram entregues à sua ociosidade. O Libório e o Osonório não se classificavam em qualquer desses grupos. Encontrando-se o rancho da localidade em tempos conturbados devido à escassez de instrumentistas, o Libório fora convidado a frequentar aulas privadas de concertina de modo a colmatar essa lacuna. Ao fim de quatro lições encontrara-se apto a dar suporte ao acordeonista principal. Depois de se amestrar em tal arte, o Libório recrutou o Osonório como um dos seus pupilos e ambos davam suporte às mostras etnográficas levadas a cabo pelo grupo. Não frequentavam o grupo como objecto de entretenimento nem tampouco isso contribuída para a sua realização pessoal. A sua permanência era justificada por uma espécie de compromisso de responsabilidade, dado que a sua exoneração, apesar de não ser suficiente para lhe por termo, era o bastante para causar transtorno. A carência de motivação e a dedicação a projectos mais talhados às suas expectativas levou o Libório a abandonar o folclore. O Osonório, por seu turno, lá permaneceria enquanto não se alterasse a sua situação pessoal.
Durante o tempo que dedicou à etnografia, o Libório travou amizades e estabeleceu contactos que, apesar das suas características não se enquadrarem nas sua áreas de eleição, trouxeram sempre algo de positivo à sua relação social. No entanto, não tanto da sua responsabilidade, cultivou algumas inimizades que lhe traziam alguns dissabores. O cerne das suas conflituosidades consistia numa indivídua que, se assim se possa chamar, poderia ser considerar como sendo a sua anti-namorada. Talvez se devesse a alguma psicose ou repulsa sexual, o seu comportamento abjecto quando se tratava de manter qualquer espécie de relação interpessoal despida de qualquer intuito amoroso com o Libório, ou quiçá pudesse imaginá-lo como alguém que poderia eventualmente interpor entre si e o seu idealizado amante. É certo que tal atitude levou ao surgimento de atritos, aos quais o Libório deixou de ser indiferente, cultivando, deste modo, uma considerável aversão  àquela pessoa.
O Osonório continuou a actividade após a exoneração do Libório, substituindo-o como instrumentista principal. O abandono do Libório havia sido planeada muito antes, tendo sido o seu empenho na formação do Osonório motivado por esse desejo, sem prejuízo para a continuidade do grupo. Ambos reuniam-se regularmente para confratenização social durante um café ou à mesa de um bar. Numa das suas conversas casuais, começou a materializar-se uma ideia algo bizarra.
Enquanto o Libório prosseguia os seus estudos de mestrado, o Osonório arranjara emprego na indústria metalomecânica como técnico de testes de tratamentos térmicos. As características predominantemente masculinas da sua equipa dava azo à troca entre membros dos contactos telefónicos das raparigas mais bonitas. Tal comportamento era quase como um ritual frequentemente estendido aos amigos mais chegados com o propósito de aprofundar a rede de informação. No cerne do sistema estava o Paracetamório cujos atributos físicos lhe permitiam extrair confidências das mais prudentes mulheres.
A mesma usina empregava o Patetório, um indivíduo que se caracterizava pela sua deficiência intelectual. O Patetório era mais alto do que o Libório e o Osonório, tinha um corpo esguio, malfeito e um defeito no nariz tornavam-no numa figura pouco atraente. O seu cabelo escuro ondulado, apesar de cortado curto, deixava antever esporádicos caracóis. A mesma idumentária que albergava todos os dias assinalava a sua falta de esmero e sua pronunciada dislalia exacerbavam a sua rejeição por parte dos indivíduos do sexo oposto. As suas feições e defeitos congénitos remetiam-no para os mais baixos patamares sociais, tornando-o alvo de partidas humilhantes, motejos de mau gosto e críticas insultuosas.
O Libório conhecera-o nessas circunstâncias. Alguém proferira um piropo depriciativo e o Palermório tornou-se agressivo com todos os presentes. A sua atitude tornou aquela cena indelével na memória do Libório.
- O Patetório insiste que lhe forneça alguns dos meus contactos. 
Queixava-se o Osonório enquanto tragava um gole de café.
- Estou a pensar em facultar-lhe o contacto de duas feias que considero insuportáveis.
Continuou.
- A que Patetório te referes?
Perguntou o Libório curioso. Uma breve descrição física e a referência ao seu distúrbio da fala foram suficientes ao Libório para identificar o indivíduo em causa.
- Conheci-o há um tempo atrás. Que pessoa caricata!
- Respondeu o Libório e continuou:
- Porque não lhe forneces o meu número de telfone e dizes tratar-se de uma rapariga muito bonita?
O Osonório sentia-se desconfortável com acções irreverentes e, por isso, começou por considerar a ideia como algo a refutar.
- Não me parece que seja boa ideia.
- Porquê? - Perguntou o Libório. Continuou:
- Poderias encarar isso como uma partida inofensiva.
Após um prolongado debate, o Libório convenceu o Osonório a alinhar no seu inofensivo plano.
Não tardou muito até que o Patetório voltasse a insistir na partilha de contactos.
- Vou-te providenciar o contacto de uma rapariga que talvez te possa interessar.
- Obrigado, Osonório. Vou tentar a minha sorte o quanto antes. - Diz-lhe o Palermório.
O Osonório, de acordo com o combinado, forneceu-lhe o contacto do Libório. De seguida, avisou o Libório, enviando-lhe a mensagem:
- "Cedi o teu número de telefone ao Palermório como combinado. Ele pensa que és uma rapariga."
Na mesma mensagem, o Osonório enviou o número de Palermório de modo que o Libório pudesse identificar qualquer as suas mensagens ou telefonemas.
O Palermório não tardou a enviar a primeira mensagem.
-"Quem és"? - Escreveu.
O Libório, dando a entender tratar-se de uma pessoa que não se entrega a confidências com desconhecidos, returque com uma pergunta:
-"Isso pergunto eu! Quem és tu?"
A resposta não se fez demorar.
-"Sou o Palermório."
-"Como conseguiste o meu número?"- escreveu o Libório com o intuito de despistar quaisquer dúvidas cuja facilidade de aceitação pudesse indicar algo de errado.
A resposta do Palermório, apesar de demorada, parecia conter uma justificação razoável para além de proteger a confidencialidade da fonte. Como a generalidade das raparigas adolescentes têm predisposição para travar novas amizades com rapazes das suas idades ou um pouco mais velhos, o Libório decidiu facilitar o início de uma espécie de amizade virtual por correspondência sem que esse comportamento parecesse estranho ao Palermório.
O Palermório começou pelas mensagens de piadas e escalou o tema até ao nível da sedução com troca de mensagens apaixonadas. Procurou saber alguns detalhes da suposta rapariga e acabou por lhe sugerir o envio de uma fotografia. Trocaram fotografias, tendo o Libório personificado a rapariga do grupo etnográfico que lhe causava repulsa. Para além do facto de que frequentava um grupo folclórico, o Libório contou ao Palermório algumas supostas confidências não obstante a sua iversossimilidade. O ponto alto da realização do Palermório aconteceu quando a suporta rapariga se mostrou disponível para um encontro em pessoa.
- "Na próxima sexta-feira tenho ensaio do rancho."
- "Podes ir lá ter comigo."
Escreveu o Libório, personificando a rapariga.
- "Está bem." - Escreveu o Palermório.
O cenário da partida estava montado. No entanto, para atingir o máximo efeito, era necessária a intervenção do Osonório.
- Marquei um encontro com o Palermório no ensaio do rancho. - Disse o Libório.
- Mas a rapariga em questão vai lá estar. - Responde o Osonório.
- É essa a ideia.
E continuou o Libório:
- Quando ele chegar, preciso que me descrevas todo o cenário, onde ambos se encontram e como se estão a comportar.
- Como queres que faça isso? - Perguntou o Osonório.
- Através de mensagens. Depois vou lá ter.
- Mas eles podem desconfiar. - O Osonório mostrava-se reticente, temendo ser descoberto.
Após alguns momentos de insistência, o Libório convenceu o Osonório a alinhar no seu plano.
A existência de um bar nas sedes das imensas colectividades que polulam pelo país é um condimento essencial tanto na angariação de alguma receita como na serventia dos sócios. A sede do rancho situava-se num edifício antigo. O salão onde se realizavam os ensaios ocupava a totalidade do rés-do-chão. O bar era aberto ao público no primeiro andar, dividindo o espaço com um pequeno armazém para roupas e utensílios e uma sala de reuniões da direcção.
A rapariga foi a primeira a chegar ao ensaio do rancho, levando o Osonório a informar o Libório de que tinha subido ao primeiro andar.
- Já chegue! A que horas vens? - continha a mensagem de telemóvel que o Libório enviara ao Palermório, fazendo-se passar por outra pessoa.
- Estou ansiosa por te conhecer. - Continuou.
Quando o Palermório chegou ao local, a rapariga já se encontrava no salão de ensaios, facto que era conhecido do Libório através do Osonório.
- Sobe ao primeiro andar e espera po mim no bar que eu já lá vou ter. Estou aqui a discutir assuntos importantes com umas pessoas. - Escreveu o Libório.
O Osonório informou o Libório que o Palermório chegara ao bar e o cumprimentara, negando-se a continuar a compactuação com a brincadeira. Receava, claro, ser desmascarado pelo seu colega de trabalho. O Libório, face à ausência de informação foi forçado a deslocar-se ao local. Não decorreu muito tempo até que se iniciasse o ensaio.
- Desculpa-me a demora, o ensaio já começou. Anda ter ao salão que depois falo contigo. - Mensagem recebida pelo Palermório.
Quando o Libório chegou, já decorria o ensaio. Entre a assitência encontrava-se o Palermório com um semblante pesado que parecia transparecer um misto de tristeza e espanto.
- O que está ele aqui a fazer? - Perguntavam os elementos do rancho entre si, com o intuito de atormentar o Palermório. Era grande a sua fama.
- O que te traz por cá? - Perguntou um elemento mais condescendente e que o conhecia.
O Palermório não ousou responder. O seu estado de espírito não lho permitia.
No final do ensaio, o Palermório arranjou coragem para enterpelar a rapariga.
- Porque não vieste ter comigo? - Perguntou o Palermório.
- Porque fazê-lo, se não te conheço? - Resturquiu a rapariga com uma nova pergunta.
- Mas disseste que me amavas e que me querias conhecer! - Insiste o Palermório.
- Conheces esse indivíduo? - Perguntou uma componente do rancho, mostrando uma arrogância desmedida e impedindo o Palermório de obter uma resposta.
No final, restavam apenas o Libório, o Osonório, e o Palermório, com os seus olhos lacrimejantes, convidara-os para acompanhá-lo a uma festa popular organizada num freguesia vizinha. Durante a viagem contava a sua história, tendo o Osonório como principal receptor:
«
Quando te convenci a facultar-me o número dela, Osonório, enviei-lhe uma mensagem para o telemóvel com o desejo de conhecê-la. Ao princípio pareceu não interessar-se mas com o tempo acabou por mudar de opinião. Começámos a ter conversas mais agradáveis e acabámos por trocar fotografias. Ela achou-me lindo e, mais tarde, disse que me amava. Dizia-o todos os dias. Eu também a amava e trocávamos mensagens de ternura.
Decidi dar um passo em frente e convidá-la para um encontro pois desejava conhecê-la pessoalmente. Ela dizia que era difícil porque trabalhava e, ao fim-de-semana, era ocupada pela família. Lembrou-se de marcar o encontro durante o ensaio do rancho.
Disse-me para encontrá-la no bar da colectividade. Quando lá cheguei, ela estava na salão a conversar descontraidamente com outras pessoas, dizendo-me tratar-se da discussão de assuntos importantes. Quando o ensaio começou, pediu-me para descer e interpelá-la quando quisesse. Fi-lo no final do ensaio, como viste. Não percebi o que aconteceu. Disse-me que não me conhecia depois de ter enviado todas aquelas mensagens de amor. Não consigo compreender a sua atitude. Num momento diz que me ama e, no momento seguinte, diz que não me conhece.
»
Durante o discurso, o Osonório mostrava um misto de complacência e apreensão. Conhecia bem a históra. O Libório fazia um grande esforço para conter as gargalhadas, mostrando um semblante apático sempre que o Palermório o encarava pelo espelho rectrovisor.
Muitas paixões por correspondência resultaram. Esta não. Não estava destinada à partida.

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